quinta-feira, 16 de março de 2017

47° dia - Jeremias - conto


Teresópolis, 16 de março de 2017

A belíssima música Romaria sempre mexeu muito comigo. A escutava e imaginava histórias...

É muito legal buscar inspiração em imagens para exercitar a escrita criativa. Há alguns anos aprendi essa técnica no curso on line Terapia da Palavra. Um curso excelente que recomendo.

Esse é o primeiro conto que escrevo inspirada numa letra musical. E que letra! Que responsabilidade!

Com vocês, meu caipira Jeremias.


  ༺༻


A medida que o elevador descia pelo buraco estreito e fundo, a luz do dia tornava-se um pequeno ponto esmaecido e distante.

Todo dia era tudo igual. As três e meia Jeremias levantava pegava sua caneca de alumínio amassada e encardida. Colocava três dedos de Corote, sua bebida e principal refeição nos últimos cinco anos. Fechava os olhos e devaneava. Pensava em Emerinda. Como estaria ela agora? Sempre que pensava em Emerinda conseguia ver seu rosto. Somente o rosto. E o sorriso no rosto. Sorriso de gente sincera. Um grande diastema enfeitava o sorriso sincero de Emerinda. O cabelo? Como era mesmo o cabelo?
Jeremias já não sabia mais se era curto, liso ou crespo. A única coisa que ele sabia era do sorriso sincero. A grande janela entre os dentes brancos. Essa memória era tão boa que ele conseguia até sentir o cheiro de café da boca de Emerinda. O café que ele não tomava mais.
Mas ele não tinha só lembrança boa não. Logo a vista turvava e ele via o que não queria ver. A imagem do cavalo negro. Lindo. Mangalarga. Fugido à galope da fazenda do Sinhô Amadeu. Num galope selvagem, o mais selvagem que ele jamais vira. O puro sangue atropelou Emerinda, que não tinha sangue puro como o cavalo do Sinhô. Era fraca a Emerinda. Prenha estava do seu único filho que não vingou. Chegou mesmo a nascer. Morto. Ainda teve Jeremias que pagar o enterro dos dois. Pegou empréstimo com Sinhô Amadeu. Um ano inteirinho de trabalho na lavoura. Sol a Sol. Pagou tudo e sumiu na vida. O pouco que sobrou jogou. Perdeu. Ganhou. E perdeu de novo. Foi aí que conheceu a branquinha. Ele gostava da branquinha. Fazia esquecer de tudo. Pena que ele estava esquecendo até do cabelo de Emerinda.
Há léguas desse tempo. No tempo presente chegou Jeremias às Minas. As Gerais. Lugar bonito. Cheio de verde. E de fortuna. Jeremias buscou uma mina para cavar a rocha. Ficou longe das fazendas. Longe dos cavalos. O pouco que ganhava pagava sua pinga.
E devagar passavam os dias. Um dia na mina era igual a noite. A noite fora da mina era mais clara que a luz do dia na mina. E Jeremias nada via. Dia ou noite. Era tudo igual. A aguardente girava na cabeça. Girava mundo. E os dias passavam mais devagar ainda.
Outro dia. Três e meia. Como de costume pegou a caneca de alumínio encardida. A Corote estava vazia. Partiu para a mina sozinho sem a branquinha. Tudo estava diferente. O elevador descia e a luz aumentava. Esfregou os olhos. A luz ofuscou. Jeremias nada entendeu. De onde vem tanta luz, sô!
Chegou no final do buraco fundo. Pegou sua pequena picareta e seguiu a luz. Ninguém o seguiu. Sentou-se no chão e bateu na pedra. Bateu. E bateu. E bateu. Entrou em transe. De fome e de sede. O transe da abstinência. Bateu na pedra de olhos fechados. E com os olhos fechados viu Maria. Sim, a Virgem. Ela apontou a direção. Jeremias levantou-se deu três passos e bateu na rocha. E bateu. E bateu. E de novo. E outra vez.
Uma luz mais forte e brilhante surgiu. Um pequeno ponto. Muito brilhante. Ele segurou pela primeira vez um diamante. Enfiou no bolso. Bateu na rocha. De novo. E de novo. E outra vez. Uma pepita de ametista saltou na sua mão. Levou pro patrão. E correu. Correu léguas. Foi pra longe. A pé e feliz.
Na cidade grande trocou seu diamante. Comprou camisa, sapato e terno de missa. Se curou do medo da morte. Comprou um cavalo marrom. Bonito de crina preta. Montado nele foi com rumo certo. Ao encontro de Maria. Sim, da Virgem. Gratidão, era seu nome agora. Jeremias Gratidão.
Chegou em Aparecida. Lugar da aparição de Maria. Sim, da Virgem. Outra Maria apareceu. Com um sorriso sincero. Uma grande janela no sorriso. Cabelos cor de mel, olhos de cobra. Enfeitiçou.

Agora Jeremias tem pouso certo. Tem família. Café com pão. E criança arrodeando ele. E cavalo bonito. Não tem medo. Só gratidão.






É de sonho e de pó, o destino de um só
Feito eu perdido em pensamentos
Sobre o meu cavalo
É de laço e de nó, de gibeira o jiló
Dessa vida cumprida a sol
Sou caipira, Pirapora nossa
Senhora de Aparecida
Ilumina a mina escura e funda
O trem da minha vida
Sou caipira, Pirapora nossa
Senhora de Aparecida
Ilumina a mina escura e funda
O trem da minha vida
O meu pai foi peão, minha mãe, solidão
Meus irmãos perderam-se na vida
Em busca de aventuras
Descasei, joguei, investi, desisti
Se há sorte eu não sei, nunca vi
Sou caipira, Pirapora nossa
Senhora de Aparecida
Ilumina a mina escura e funda
O trem da minha vida
Sou caipira, Pirapora nossa
Senhora de Aparecida
Ilumina a mina escura e funda
O trem da minha vida
Me disseram, porém, que eu viesse aqui
Pra pedir em romaria e prece
Paz nos desaventos
Como eu não sei rezar, só queria mostrar
Meu olhar, meu olhar, meu olhar
Sou caipira, Pirapora nossa
Senhora de Aparecida
Ilumina a mina escura e funda
O trem da minha vida
Sou caipira, Pirapora nossa
Senhora de Aparecida
Ilumina a mina escura e funda
O trem da minha vida


Clique aqui para ouvir Romaria com Almir Sater


Nenhum comentário:

Postar um comentário