2017 chegou e trouxe uma inspiração desafiadora. Praticar Arteterapia durante boa parte dos 362 dias de 2017.
Pretendo utilizar diversos suportes para expressar imagens oníricas, imagens do inconsciente, e utilizar a escrita criativa para elucidar vivências arteterapêuticas e de constelações familiares. A ideia é formar uma espécie de diário do inconsciente.
Certamente haverão dias em que não sentirei necessidade de expressar-me com a Arteterapia, seja por falta de inspiração ou por estar absorvida pela rotina. Nesses dias, sempre que possível, vivenciarei atividades amorosas e as registrarei no blog.
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Em 2016 participei de duas constelações familiares em grupo conduzidas pela psicóloga Silvia Rocha.
Constelação familiar é uma técnica criada pelo psicoterapeuta alemão Bert Hellinger. Na constelação em grupo os participantes tornam-se esculturas vivas na reconstrução da árvore genealógica da pessoa que está sendo constelada, objetivando remover bloqueios do fluxo amoroso de qualquer geração ou membro da família.
Os sistemas familiares carregam sentimentos, vivências e aprendizados, falados ou não, que são transmitidos às futuras gerações. Os silêncios e as situações ocultadas irrompem em comportamentos indesejados e sofrimento para toda a árvore familiar. Um trabalho forte e muito bonito na busca do equilíbrio e do perdão.
Na primeira constelação que assisti fui convidada a fazer parte do campo do "constelado", ou seja, fui conduzida a atuar como uma das esculturas vivas da constelação. Dessa experiência trouxe comigo uma gama de sentimentos e impressões que, de certa forma, se expandiram no meu próprio núcleo familiar. Observei pessoas ao meu redor manifestando algum tipo de transformação. Meu marido conseguiu retomar contato com o filho. Minha tia Arethusa teve uma agitação no dia seguinte à constelação. Entrei num processo de aprofundamento de sentimentos. Lembranças afloraram. Figuras apagadas clamavam por sair da obscuridade. Os segredos de família logo seriam revelados...
Estava convicta de que a constelação familiar é um processo de cura que ultrapassa o aqui e agora. Ouvi o chamado. Precisava agir pelo bem de minha família, e em especial, pela minha mãe.
No dia 03 de dezembro programei-me para assistir a duas constelações familiares. No dia um dos constelados desmarcou e vislumbrei a oportunidade de eu mesma ser constelada. Com a cara e a coragem me ofereci para a segunda constelação do dia. Foi das experiências mais fortes que vivi. A alma de minha família foi exposta com seus dramas.
Despi-me, e os despi.
Os mortos e os vivos juntos desafiando as leis físicas. Simbolicamente retomamos o fluxo amoroso perdido em possíveis assassinatos, desamor, mágoas, rancores e silêncios.
Minha mãe diante de mim buscando a morte. E eu buscando o perdão e a reconciliação.
O representante do algoz da família olhava-me com firmeza, sem deixar-se comover por minhas lágrimas. Seu olhar duro foi fundamental para que eu conseguisse me olhar. Contatei minha sombra.
Sim, era eu mesma ali. Debochada e insensível. Cheia de defeitos. A filha "perfeita" deu lugar à filha julgadora, crítica e hipócrita.
No chão, morta e finalmente viva diante de mim, minha tia Isaura Bemvindo e Silva.
Quando nasci ela já partira desse mundo. Meu avô a batizou com esse nome em homenagem à sua mãe Isaura de Sousa e Silva. Isaura, a tia, nasceu as 19 horas do dia 26 de novembro de 1918. Primogênita de 10 filhos.
Aos 10 anos viveu seu primeiro grande trauma. Em 1929 seu pai, meu avô, faleceu no dia 5 de junho vítima de um aneurisma na carótida que crescia a olhos vistos. Conta-se que ele aproveitou um "descuido" da família e lancetou a bola de sangue. Cinco gerações depois, em 2009, no mesmo 5 de junho, nasceu meu neto Miguel.
Voltando à Isaura ...
Não há registro fotográfico nem qualquer outro que ilumine sua figura. A iluminação veio com Hellinger.
No início dos anos 50 os Bemvindos mudaram-se para o Rio de Janeiro. Todos ficaram na capital exceto meu tio Bergamine que resolveu retornar ao Piauí para trabalhar como protético, ofício que já desenvolvia por lá.
Arethusa veio primeiro, sondou o terreno e abriu caminho para os demais.
Depois vieram Isaura, Isaurino, Alberto, Carlos, Rosália, Phriné e vovó Lili em busca de uma nova vida.
As ondas do mar carioca purificariam os traumas. Por quanto tempo?
O pouco que sei sobre Isaura veio de um desabafo de tia Arethusa há cerca de uns dez anos, quando ela tinha pouco mais de 80 anos e estava bem lúcida. Arethusa contou-me que Isaura era muito "nervosa" e um conselho de família decidiu interná-la na Colônia Juliano Moreira. Lá ela veio a falecer dia 11 de janeiro de 1959, aos 39 anos. A certidão de óbito registrou como causa mortis trombose cerebral, cardiopatia e anemia profunda.
Quanta dor e sofrimento para Lili e seus filhos.
Nasci 6 meses depois do falecimento de Isaura. Nas entranhas de mamãe pude sentir toda sua dor, remorso e angústia. Ela nunca falou nada sobre Isaura, nem sobre seu voto para a internação, mas tenho certeza de que foi motivada pelo amor à sua mãe, pela preocupação com seu bem estar para poupar-lhe de mais sofrimentos.
No recente filme "Nise - o coração da loucura" vimos como os "clientes", designação dada por Nise aos pacientes, eram mal tratados no Centro Psiquiátrico Pedro II. Lobotomias. Crueldades físicas e mentais. Chorei por eles. Chorei por Isaura.
Destinos trágicos.
Os loucos respondem pelos crimes de seus antepassados. Isaura, inocente, pagou um preço alto pelos algozes da família.
Conheci tia Isaura pelas lágrimas escorridas pelo ventre de mamãe. Pelo relato de tia Arethusa. Na constelação familiar pela moça deitada no chão representando-a, e incomodada diante da presença do representante de seu pai (meu avô).
Meu avô era cirurgião dentista. Um apaixonado por literatura grega. Registrou duas de suas filhas com nomes gregos: Arethusa e Phriné. Submetia-se às imposições de sua sogra, minha bisavó Amélia Ferreira Bemvindo. Fazendeira e dominadora, Amélia desejava uma neta com seu nome. Meu avô não contou nada sobre o registro de Phriné e permitiu que a filha fosse chamada de Amélia.
O verdadeiro nome de Amelinha só seria descoberto quando mamãe entrou para a escola aos sete anos de idade. Foi uma surpresa para todos descobrir seu verdadeiro nome. Meu avô já era falecido nessa ocasião.
A constelação familiar me deu a dimensão do quanto as ações de meus antepassados exercem influência na minha vida. Presto homenagem aos mortos e desaparecidos da família, na certeza de resgatar o Amor do nosso clã.
Isaura agora descansa em paz. Deixou de ser um fantasma. Morta voltou a ser uma pessoa de carne e osso. Quando criança possivelmente banhava-se no rio, brincava de teatro com os irmãos e tinha muitos planos para o futuro. Foi professora. Sensível e melancólica. Esquizofrênica? Quem sabe? Desafortunadamente sua vida esvaiu-se num Sanatório Público.
Tentar entender o que se passou com Isaura foi muito importante para mim. Aprendi muito com a constelação familiar. Ao iluminar a vida de Isaura possibilitei um caminho de luz para mim e meus descendentes.
Orgulho-me em fazer parte de uma família com todas essas histórias. Histórias intensas. Histórias humanas. Histórias de superação.
Uma família de artistas. Vovó tocava cavaquinho e era exímia costureira e bordadeira. Mamãe tocava acordeón e tem o dom do canto. Os Bemvindos são pessoas destacadas por sua inteligência. As mulheres têm muita fibra.
Tudo pulsa em mim.
Podem existir crimes ainda desconhecidos para nós. Algozes que influenciaram negativamente outros membros dessa família. Crianças não nascidas. Vítimas acachapadas que nada fizeram para impedir as violências sofridas.
Mas também existiram os ousados, os espiritualizados, os que davam sonoras gargalhadas para espanar as tristezas, os que não se deixaram abater pelas tragédias, e os que não se perderam na sombra da vilania.
Saúdo a todos.
Tudo me molda.
Tudo sou eu.
Tudo é meu neto, seu filho, e o filho do seu filho.
Isaura,
sinto muito
por tudo que você passou
por sua morte solitária e prematura
por tudo que você não viveu
por favor me perdoe
pelas dores que você enfrentou
pela solidão
pelos possíveis eletrochoques
pelo desamor e incompreensão
sou grata,
por me mostrar que o silêncio não cicatriza feridas, pelo contrário, as mantém sangrando
por me mostrar a importância de honrarmos e agradecermos a todos os membros de nossa família
por ter me dado a oportunidade de iluminar seu nome
pelo perdão concedido à minha mãe na constelação familiar
te amo pela pessoa que você foi
pela sua sensibilidade
pelo seu grande esforço para não sucumbir
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