Teresópolis, 18 de junho de 2016.
Recebi o fio da vida. Por um breve instante tomei o lugar de Láchessis e determinei o comprimento do fio de minha existência. Assim começou mais uma vivência do curso de formação em Arteterapia.
Estou muito empolgada e impressionada com os conteúdos psíquicos que estão aflorando. Um reencontro com Jung. Ele que foi fonte de inspiração nos meus anos de faculdade e que por quase duas décadas deixei esquecido no fundo do baú.
Essa retomada trouxe viço para a mente e para o espírito.
Voltando ao fio das Moiras, fomos instruídas a trazer cópias de fotografias de família ou, na impossibilidade, trabalharmos com recortes de revistas. O fio da vida - pedaço de barbante - deveria entrar na composição fosse utilizando-o como varal para as fotos, ou amarrando um álbum. Cada participante teve total liberdade para criar e deixar fluir. A busca pelas fotografias, por si só, foi um momento de grande reflexão e retorno. Fotos da infância, adolescência, vida adulta. Filhas, afilhadas, irmã, netos. Vivos e mortos. Uma imagem em particular me atraiu e ao mesmo tempo me incomodou, quis deixar de fora mas o compromisso em desvendar-me falou mais alto.
Recebemos folhas A3, cola, lápis de cor, giz de cera, tesoura, e recortes de revista.
Muitos utilizaram mais de uma folha. Engraçado como a concepção para mim foi rápida. Eu já sabia o que fazer e como fazer. É bom pensar nas diretrizes, nos materiais que serão utilizados numa composição, desde que não se engesse o processo criativo. Permitir que a fluidez seja seu guia. Deixei-me conduzir pelo encantamento do fazer artístico.
Iniciei recortando as fotos para fazer um patchwork com as imagens.
Deslizava a tesoura bem devagar, contornando cada história por trás das imagens. A cada curva uma pequena lâmpada imaginária iluminava os cantos mais obscuros da memória, fazendo-me reviver emoções e sentimentos há muito guardados.
Melhor que reviver é compreender o que se "deixou pra lá", e saber que nada pode ser colocado para debaixo do tapete do inconsciente sem que, em algum momento, emirja mais potente e significativo.
Com as imagens recortadas iniciei a montagem, procurando dar um sentido ao patchwork fotográfico.
Imagens da infância no início da vida, do lado esquerdo do papel. No centro as filhas, as fotos do casamento, meus genros, e em destaque meu neto Miguel e o seu violino improvisado com a guitarra ao contrário e a baqueta do xilofone em lugar do arco. À direita a foto do dia em que conheci Franklin. Minha irmã adulta, as afilhadas, minha tia, minha neta Silvia. Gatos, cachorro e passarinho. Sempre estou cercada por bichinhos queridos.
Voltando para a esquerda encaixo a foto de minha madrinha e prima e, ao lado delas, a fotografia que gostaria de ter deixado "de fora", eu e mamãe em Salvador.
Em setembro de 2008 eu e mamãe fizemos nossa última viagem juntas a Salvador para participar de um curso da Fundação Arte de Viver, com o propósito de romper barreiras pessoais por meio de técnicas de yoga e processos em grupo. Minha madrinha era irmã de mamãe e faleceu algumas horas após um terrível acidente de carro em janeiro daquele ano. Depois do enterro mamãe confessou ter perdido o maior amor de sua vida. Essa declaração foi forte e reveladora. Entendi que a fala de mamãe não era força de expressão ou devido à dor da perda. A viagem à Salvador nos propiciou conforto, distração e revelações. Foi uma salvação em muitos sentidos. No encerramento do curso mamãe saiu do casulo e fez uma confissão pública "tenho muito medo de gente e esse medo atrapalhou muito a minha vida". Foi emocionante ver mamãe revelando-se, saindo de sua armadura. Chorei aninhada em seu colo, em posição fetal, agradecida por esses dias de luz e por estar mais próxima à mãe da minha infância.
Ao terminar a colagem das fotos vi que as duas irmãs ficaram juntas. Nada é por acaso.

As cópias fotográficas foram emolduradas pelo fio da vida. Usei cola colorida. Lambuzei os dedos e bem devagar fui passando em toda extensão do barbante. Relacionei a viscosidade da cola com a seiva da vida. O barbante desenhava círculos e curvas no papel. As curvas de minha vida. Sem pensar deixei o barbante escolher seu percurso.Indo e vindo.
O início da vida é branco e puro. O momento dos grandes amores, vermelho. Depois veio o verde, azul e, representando o momento atual, o dourado. Momento de mergulho no inconsciente. Apogeu da vida. Depois o fio termina branco da mesma forma como quando cheguei ao mundo.
Para não deixar o fio "solto" pensei em colocar um pássaro na ponta, representando meu vôo. Depois de confeccioná-lo notei que havia feito uma pomba branca. Quando sair dessa vida sairei como uma pomba da paz, sem mágoas, ressentimentos ou qualquer peso.
Após o término da tarefa compartilhamos com o grupo.
Ao ver o trabalho pronto tive uma clareza. Ao longo da vida minhas mãos ampararam e sustentaram e, após conhecer o Franklin, passei a ser amparada.
Não falei nada sobre a morte de minha madrinha e o impacto na vida de mamãe.
Como disse antes, nada fica debaixo do tapete ...
No término do dia recebemos uma tarefa para o próximo encontro. Produzir um novo trabalho sobre o que não foi dito, percebido ou que tenha suscitado riso. Expressar algo que tenha chamado atenção e, por algum motivo, não tenha sido contemplado.
A escolha dos materiais seria de livre escolha. Poderíamos fazer um trabalho tridimensional, até mesmo preparar uma comida (nesse caso o prato deveria ser fotografado). Liberdade criativa. Libertação dos conteúdos represados.
Mais uma vez concebi mentalmente tudo que pretendia colocar na nova composição.
A morte de minha madrinha e tia, alma gêmea de mamãe. O caixão e a imagem de minha madrinha partindo para outra esfera.
A tristeza profunda que se abateu com essa perda representada pelas lágrimas no centro da figura.
Várias fotos de mamãe solteira, com o grupo de teatro, com as filhas, na praia, casando, na companhia da irmã querida. Todas cobertas com um véu negro.
Pouco depois da morte da irmã mamãe entrou num processo gradativo de perda cognitiva e de memória.

A doença do esquecimento abateu-se sobre ela.
O véu negro simboliza esse esquecimento.
Acima desse véu uma imagem de mamãe jovem surge. Linda com o dedo indicador na têmpora sugerindo um estado reflexivo. Ela é despertada pelas notas musicais. Música. Seu maior dom.
Há algum tempo, muito intuitivamente, venho praticando musicoterapia com mamãe.
Fazer essa composição foi uma catarse de sentimentos. Colocar as memórias de mamãe sob o véu do esquecimento e a despertar pela música fez parte, não somente do meu processo de cura, como também do dela. De uma forma mágica e muito louca percebi que trabalhar com os materiais artísticos atinge também o psiquismo de quem se quer curar. Bruxaria, magia ou a força do amor? Talvez um pouco de tudo.
Fazer essa composição foi uma catarse de sentimentos. Colocar as memórias de mamãe sob o véu do esquecimento e a despertar pela música fez parte, não somente do meu processo de cura, como também do dela. De uma forma mágica e muito louca percebi que trabalhar com os materiais artísticos atinge também o psiquismo de quem se quer curar. Bruxaria, magia ou a força do amor? Talvez um pouco de tudo.
Continuo praticando a musicoterapia intuitiva. Com o auxílio do Youtube assistimos grandes cantores e compositores dos anos 60 aos 90.
Por mais coberta que esteja pelo véu do esquecimento ao ouvir o refrão "Vem vamos embora que esperar não é viver, quem sabe faz a hora não espera acontecer", mamãe desperta, seus olhos brilham. Eu arrepio.
Outro dia ela estava tão desanimada que nenhuma das músicas lhe tocava. Lembrei de uma, especial e antiga, que foi seu bordão durante um bom par de anos e expressa bem sua personalidade irônica. Quando entoei bem forte "eu vou é mandar você pra tonga da mironga do kabuletê" ela riu.
“ Cantar é usar a voz da alma, é o sopro que tem o sentido de um princípio de vida. É soprar espírito sobre aquilo que está precisando viver.” (Mitos e Arquétipos na Arteterapia – Ligia Diniz – La Loba pg 38).
Consciente peço licença e me invisto em La Loba para soprar música e fazer mamãe sair do véu.
“ Cobra sarada no carnaval que pega fogo”
E o calor tá de rachar
Toma uma ducha fria meu bem
Vem pro bloco vem brincar
Tem super heróis, piratas e rainhas
Muita gente caindo na folia
Põe a tua fantasia
E vem pra rua, sassaricar
Sassarica meu bem
Rebola e ginga também
Deixa o fogo se espalhar
Sassarica meu bem
Rebola e ginga também
Que o cobra sarada vai passar
Sandra Pinto
Phriné Pinto
Deise Luci dos Santos
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