Retornei do Rio dia 20 de fevereiro a noite depois de dois dias visitando mamãe, tia Arethusa e resolvendo algumas coisas, dentre as quais marcar uma consulta para tia Arethusa com uma fonoaudióloga.
Tudo transcorreu super bem. As velhinhas estavam ótimas. A fono foi em casa. Os problemas administrativos foram resolvidos e, a tardinha retornei para casa.
À noite, no chuveiro quentinho, tive a visão de tio Isaurino. Sua fotografia quando jovem veio à minha mente. Marcante. Pensei no bem que ele fez a toda família, principalmente a minha tia Arethusa, sua pensionista. Pensei em como ela estaria vivendo sem esse auxílio.
Quando criança eu tinha medo do tio Isaurino. Sempre carrancudo e ranzinza.
Militar, católico fervoroso e rígido, era uma figura sempre muito discreta, quando não estava aborrecido.
Certa vez eu passava um final de semana na casa de vovó e presenciei tio Isaurino dando uma surra em tia Arethusa. Ela ficou abaixada protegendo sua cabeça enquanto o tio raivoso lhe batia, tudo porque ela havia saído do seu quarto em trajes menores, acho que de calcinha com um lenço amarrado nos seios.
Exagerado. Depressivo. Melancólico. Caxias. Era difícil gostar de um cara com esse perfil.
Cresci sem ter nenhuma afinidade por esse tio, talvez influenciada por mamãe que o tratava com distância e ressalvas.
Era um cumpridor de deveres e obrigações. Cuidava do irmão caçula. Cuidava também dos bens de minha tia/madrinha Rosália, que morava em Brasília e comprara um apartamento no Rio.
Por volta dos meus 16 anos meus pais se separaram. Devido às dificuldades financeiras eu, mamãe e minha irmã fomos morar no apartamento de minha madrinha, o mesmo que tio Isaurino cuidava com zelo militar.
Um dia o tio foi ao apartamento e disse que estávamos destruindo o imóvel. Eu já namorava meu futuro marido e trouxe para casa sua cadela prenha. O tio presenciou os filhotinhos recém nascidos da Brisa correndo e sujando o sinteco novinho da casa.
Hoje compreendo sua decepção, afinal ele estava cuidando de tudo e nós aparecemos para atrapalhar!
Na ocasião não o compreendi, fiquei furiosa e o expulsei da nossa casa. Não aceitei a intromissão do tio em nossa vida.
Apesar dessas mazelas do passado, enquanto tomava meu chuveiro o sentimento predominante pelo tio Isaurino foi gratidão.
Senti gratidão amorosa e respeito por tudo que ele fez. Pensei na vida da tia Arethusa, na herança que ele deixou para a família, dinheiro poupado e nunca gasto consigo próprio.
Num outro momento, quando eu ainda era criança, lembrei-me de estar com ele, papai e mamãe olhando um apartamento à venda em Copacabana. Mamãe estava empolgada com a ideia dele comprar aquele imóvel e sair da casa da vovó, já que ele e tia Arethusa tinham sérios problemas de relacionamento. Ele nunca comprou. O dinheiro do seu apartamento em Copa foi herdado por suas irmãs.
Porque sua vida foi assim? O que o motivou ou desmotivou?
Quem sabe uma decepção amorosa?
A retidão da vida militar o moldou e o aprisionou.
Era sagitariano. Talvez o tio, em sua essência, quisesse se libertar e aventurar-se em outras terras!
Quando libertou-se desse mundo eu estava no Peru. Não fui ao seu velório e enterro. À distância orei por ele.
Hoje lhe presto uma sincera homenagem. Mesmo sem conhecê-lo bem entendo seus motivos.
Imagino o quanto lhe foi duro conviver com sua irmã Arethusa, um espelho dos seus próprios defeitos, um holofote gerando uma enorme sombra que ele próprio em sua prática católica clamava por compreender e aceitar.
Arethusa a irmã mais velha, mal compreendida, descontrolada, nervosa, saliente - que saía com roupas íntimas pela casa - hoje aos 94 anos lhe é muito grata e sempre se refere ao irmão com muito amor.
Tio Isaurino eu nunca pude lhe dizer mas quero que saiba que seu legado de lealdade, honra e compromisso foram exemplos preciosos que trago em meu coração.
Na certeza da lei do retorno projeto, nesse momento, uma nova vida para você, tio, livre das amarras que bloquearam seu crescimento.
Penso em você como uma alma liberta que retornou ao seu lugar de paz. Uma alma amorosa e altruísta. Uma alma que cumpriu sua missão terrena.
Gratidão.
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